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Escrevo com a voz emabargada e o coração revolto
Escrevo, porque isto de ser mãe requer muita paciência, muita resiliência mas lá no fundo, requer que o meu filho possa viver num mundo mais justo, mais feliz e sem desgraças anunciadas. E hoje acordo com um sentimento de impotência de não conseguir proporcionar-lhe isso, ainda que não esteja directamente nas minhas mãos este mesmo facto. Hoje acordo e acordamos todos outra vez mais pobres, mais fracos e mais débeis.
Ontem adormeci com o zumbido do vento, que era tanto que afligia a alma ao imaginar mato e terras a arder intensamente ao seu próprio sabor e mania. Ontem adormeci com o som de uma noite de serenata ao luar, canções tristes que antecipavam já o terror da manhã seguinte. Ontem a reunião era no Calvário, mas o verdadeiro, aquele por quem só lá passa pode imaginar, foi vivido por milhares de pessoas, de populações, de bombeiros a combater um inferno que é tudo menos igual para ambas as frentes. Ontem, e perdoem-me o meu egoísmo não fui capaz de ligar a televisão e acompanhar os trágicos desenvolvimentos, deixei o telemóvel assim que percebi que as notícias que iam chegando eram tudo menos animadoras, e ontem deitei a cabeça na almofada com uma grande vergonha. Vergonha sim de seres humanos, porventura em muito igual a mim que não olham a meios para atingir os fins, de seres humanos que ultrapassam os limites, que colocam em causa a vida humana para satisfazer interesses maiores. Pensando bem, poderei chamá-los de seres humanos? Um ser humano pressuponho eu que devesse ter um coração, estes têm pedras...
Perdoem-me mais uma vez, mas sim, sou a favor de os deixar arder lá no meio daquele inferno...radical?! Que seja assim apelidada, estou-me nas tintas, mas a verdade é que se isto serve tudo para um grande jogo de interesses, que fiquem lá os maus e que se salvem os bons, aqueles que estão lá com as suas casas , os seus bens de uma vida, as suas próprias vidas. Que se salvem aqueles que saem de casa sem saber se voltam e que com isto ganham apenas os louvores quando as coisas já descamabram e recebem uma medalha de honra no seu próprio funeral. Que se salvem os verdadeiros e que fiquem lá os que se deixam corromper por meras moedas ou bens de valor imediato.
E os nossos governantes?! Que se calem porque em momentos de dor e revolta algo pode correr muito mal. Que se calem porque não sabem, não vivem, nem sobrevivem a tragédias desta dimensão. Aos nossos governantes, aqueles que querem apurar responsabilidades, que acham que as populações não devem esperar por ajuda e por mãos à obra, aqueles que acham que não há erros humanos de maior quando se matam, hoje mais de 74 pessoas que se calem, porque a esta hora as palavras doem, as palavras não resolvem, as palavras não trazem de volta os mortos, o verde da natureza e o ar puro das nossas serras. Que se calem...porque actuar agora já é tarde. Valerá apena apurar responsabilidades? Calem-se porque num país onde se deixam morrer 64 pessoas numa estrada, onde não há reordenamento do território, onde não há prevenção e onde se multa o contribuinte porque não se pode multar o ordenante é muito desleal. Que se calem porque sempre houve maneira de resolver minimamente o problema mas nunca se quis na verdade que estas situações dos fogos fossem resolvidas.
Calem-se todos, façam o devido silêncio neste momento em que muitos ainda correm contra o tempo e contra um inferno chamado fogo. Calem-se todos e respeitem a dor de quem perdeu o importante mas sobretudo o essencial. Calem-se todos porque com a vossa arrogância, com a vossa presunção e com a vossa falta de energia para actuar calaram-se hoje e injustamente mais tantas vozes que farão falta aos seus. Calem-se todos e reduzam-se à vossa insignificância do não saber ser nem estar num posto para o qual todos elegemos.
A nós cidadãos...a vós bombeiros...apenas o meu reconhecimento e o meu sincero bem-haja pela entrega, pela dedicação e pelo amor que têm não só à causa mas sobretudo às pessoas.
A ti pequeno príncipe T quero que saibas que estarei sempre por aqui, evitando estes males maiores mas mostrando sobretudo que nem sempre os dias amanhecem sorridentes, como hoje...
* Foto Agência Lusa/Paulo Novais