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Ele, o microfone e a mamã

"Radicalismos" de uma mãe galinha, rabiscos e cantorias do pequeno príncipe T e vida, muita vida para vos mostrar. No nosso T3 vivemos e sorrimos muito.

Ele, o microfone e a mamã

O Mano Tiago

Liliana Silva, 19.08.21

 

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O Tiago está crescido...muito crescido...a passar uma fase em que, suponho eu, seja de uma pré adolescência precoce ... temos tido muitos disparates, sobretudo aquela fase em que "eu quero, eu posso e eu mando"... Detesto isto  mas cá o vamos levando, sabendo que a missão ainda agora está a começar.

O Tiago está crescido e talvez rebelde...mas noto-lhe a revolta no peito, sinto-lhe tristeza na alma! Não sempre, nem propriamente muitas vezes, mas a verdade é que sim, a verdade é que o que aconteceu pode ter-lhe deixado um buraquinho no seu coração de criança feliz.

Nunca foi uma criança que pedisse irmãos, falava nisso muito por acaso, talvez até, quando os amiguinhos da escola tinham um irmãozinho e aí ele também tocava no assunto. Fora isto nunca senti da parte dele aquela pressão que há em muitas crianças em ter um irmão/irmã. Excepto quando soube que lhe tinha calhado na rifa passar a ser o irmão mais velho. Retive na minha memória as lágrimas de felicidade quando lhe confirmámos que estava grávida, o facto de se lamentar por ainda faltar tanto tempo, a doçura com que beijava a minha barriga e a convicção que tinha ao querer tomar banho comigo abraçado para sentir o bebe.

Lembro-me do dia em que soubemos todos que era um menino e como aceitou de bom grado que o mano se chamasse Tomás (nome que a mãe tinha escolhido).

Os dias foram passando, e ainda que muito dificilmente, conseguimos "esconder-lhe" tudo aquilo por que estavamos a passar...tudo até ao dia em que regressei a casa sem barriga e sem o mano.

Depois de um colo vazio, tive de arranjar forças e palavras para explicar ao mano velho que não ia haver bebe, e digo-vos, foi das tarefas mais ingratas de toda a minha existência. Porque nós adultos conseguimos a magia de gerir as emoções, ainda que às vezes não seja de forma correcta (se é que isso existe)...agora saber como fica uma criança que já tinha tantos planos e tantas expectativas é de todo muito triste. 

Não sei como se conta uma coisa destas a uma criança! Não sei que reacção deveria ter perante a notícia dada! Não sei como eu própria ia reagir ao momento! Fiz tudo da forma mais simples possível, sem muitos pormenores, sem criar muita mágoa. Não me segurei e chorei com ele, ali, naquele quarto, depois de regressar de colo vazio tive de confortar um coração gigante...e ali voltou a doer muito outra vez, ali a revolta voltou a ser enorme, porque perante a pergunta "porque é que os amigos podem ter manos e eu não pude ter o meu?"...eu não soube responder...limitei-me ao silêncio, limitei-me a abraçá-lo com toda a força que tinha e a dizer-lhe que fosse como fosse ele teria agora um anjinho com quem poderia falar sempre.

A maneira mais simples que encontrei para que ele pudesse encarar a nova realidade foi dar-lhe o polvo (peluche) que tinhamos comprado para o mano.

Mamã: "Meu querido Tiago, vou dar-te uma tarefa, vais ficar encarregue do polvo que era para o mano e sempre que te sentires triste, agarras nele e contas as tuas dúvidas, medos ou preocupações como se falasses com o mano Tomás. Ele é teu. Dormirá contigo e poderás levá-lo onde quiseres. Sei que vais cuidar muito bem dele e que te lembrarás sempre que o mano estará onde tu quiseres que ele esteja."

 O Tiago sabe que existiu o Tomás. O Tiago guardou o seu amor, tanto que tinha para lhe dar, guardou-o para sempre. Falamos do mano cada vez com mais simplicidade, ainda que os olhos fiquem cheios de água, não deixamos de falar dele...porque ele é parte de nós!
O Tiago é cada vez mais uma certeza que veio ao mundo com um propósito...o de me fazer acreditar que há caminho que continua a ser preciso desbravar e que quando achamos que o poço não tem fim...chegamos lá, damos impulso e voltamos a tona.

Obrigada Príncipe! Obrigada pela tua valentia.

Um abraço

Liliana 

A nossa decisão

Liliana Silva, 11.08.21

 

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Sempre me considerei uma pessoa muito bem resolvida quanto aos temas tabu da nossa sociedade. Nunca tive dúvidas em assumir a minha posição ou defender aquilo que penso. Muito em parte porque já passei por tanto, que sei o que quero e não quero na minha vida, mas sobretudo por ter bem fundamentado dentro de mim aquilo que considero justo e aceitável. O aborto é tema de discussão na praça pública, mas nunca o foi na minha cabeça.

Defendo o aborto, como defendo a eutanásia, em situações bem fundamentadas e defendidas, nunca actos que são tomados por caprichos ou "fora de horas". 

Ainda que, quando nos toca directamente a coisa mude qualquer sentido ou tomada de opinião que possamos ter. E foi aqui, precisamente que a campainha tocou...este tema tabu não acontece só aos outros, e calhou-nos a dificil tarefa de ter de decidir a vida do nosso filho. 

A opção da amniocentese tinha já sido precipitada por algo menos bom da ecografia morfológica. Quando vamos para saber pormenores do nosso bebe e nos dizem que "não é um bebe que nos deixe descansados" é já um sinal de alerta e de medos interiores. Logo nesse dia foi proposta uma amniocentese, que em situação normal já tinha recusado, mas que agora se tornaria fulcral, mediante o quadro que nos estavam a pintar.

Segundo o obstetra, era um bebe muito quieto e com pequenos pormenores que o estavam a deixar em alerta. 

Amniocentese feita, regresso a casa envolto em silêncios, em medos, em suposições, em conversas meio banais que se tornaram grandes dilemas no mês que demorou o resultado a chegar. Um mês em que sentia a minha barriga crescer, em que interagia com o meu bebe, em que ele se mexia ao meu toque ou ao som da música que lhe punha nos auscultadores encostados à barriga, onde iam chegando as roupinhas já encomendadas... um mês em que tanto queria esquecer mas que ao mesmo tempo foram os dias em que mais atenção lhe dei.

Chega o dia D. Nova ecografia e resultado da amniocentese em cima da mesa. O obstetra começa por observar a evolução (pouca) e pergunta se já tinhamos falado com a equipa de genética. Respondemos a medo que não e aí ele limpa a minha barriga e pede-nos que passemos ao gabinete do lado, onde já toda a equipa nos esperava.

"Temos já os resultados pedidos sobre a amniocentese e se inicialmente aquilo que suspeitavamos veio negativo, por outro lado foi encontrado aquilo que chamamos de síndrome raro e que coloca o vosso filho numa situação bastante dificil, por não sabermos ao certo as extensões dos problemas que poderá vir a ter ou sequer quanto tempo sobreviverá. É uma criança que poderá ter graves problemas a nível de orgãos vitais, cognitivos e físicos. Posto isto, precisamos saber o que pretendem fazer, uma vez que está no limite de tempo para tomar qualquer decisão."

Um gabinete, quatro médicos e nós...ali de mãos dadas, lágrimas nos olhos, revolta no peito, raiva na mente e o coração desfeito. Naquele momento, entre mil e uma perguntas e ao mesmo tempo poucas palavras, tomámos uma decisão em conjunto.

Já o disse muitas vezes, não sou egoísta. Não é aceitável para mim colocar uma criança no mundo para sofrer. É para mim inconcebivel que por mero capricho, façamos sofrer um bebe indefeso que muito provavelmente iria passar o resto da sua vida em hospitais, clínicas e terapias. Não quero isso para um filho meu! 

Carreguei-o por cinco longos meses para depois o "matar", porque foi assim que me senti naquele dia...CULPADA!!

Esta é a razão pela minha gravidez interrompida às 25 semanas de gestação!!

Ainda estou em processo de luto, com ajuda psicológica e psiquiátrica, sem vergonhas, a tentar seguir o meu caminho. Um caminho de braços e colo vazio, do meu bebe. 

Hei-de chegar ao dia em que a palavra matar dará lugar à palavra salvar! Hei-de chegar ao dia em que a culpa seja cada vez menos. Hei-de chegar ao dia em que me perdoarei um pouco. Até lá, junto dos meus, inclusive da nossa estrela mais pequenina, vou apoiando a cabeça e chorando cada vez mais baixinho, para que ele possa encontrar as asas da avó e por lá fique aninhado até ao dia de nos voltarmos a tocar.

Sei que é um tema bastante controverso e polémico. A única coisa que vos peço é que não façam juízos de valor, porque deste lado está uma mãe a tentar sobreviver, um pai a tentar endireitar a casa, e um mano a tentar guardar no seu coração o irmão que sentiu mas nunca chegou a conhecer.

De coração, obrigada por todas as mensagens que nos têm feito chegar. Não há o que esconder, porque estas histórias servem para perceber que infelizmente, não acontece só aos outros.

Xi-coração apertado

Liliana