A nossa decisão
Sempre me considerei uma pessoa muito bem resolvida quanto aos temas tabu da nossa sociedade. Nunca tive dúvidas em assumir a minha posição ou defender aquilo que penso. Muito em parte porque já passei por tanto, que sei o que quero e não quero na minha vida, mas sobretudo por ter bem fundamentado dentro de mim aquilo que considero justo e aceitável. O aborto é tema de discussão na praça pública, mas nunca o foi na minha cabeça.
Defendo o aborto, como defendo a eutanásia, em situações bem fundamentadas e defendidas, nunca actos que são tomados por caprichos ou "fora de horas".
Ainda que, quando nos toca directamente a coisa mude qualquer sentido ou tomada de opinião que possamos ter. E foi aqui, precisamente que a campainha tocou...este tema tabu não acontece só aos outros, e calhou-nos a dificil tarefa de ter de decidir a vida do nosso filho.
A opção da amniocentese tinha já sido precipitada por algo menos bom da ecografia morfológica. Quando vamos para saber pormenores do nosso bebe e nos dizem que "não é um bebe que nos deixe descansados" é já um sinal de alerta e de medos interiores. Logo nesse dia foi proposta uma amniocentese, que em situação normal já tinha recusado, mas que agora se tornaria fulcral, mediante o quadro que nos estavam a pintar.
Segundo o obstetra, era um bebe muito quieto e com pequenos pormenores que o estavam a deixar em alerta.
Amniocentese feita, regresso a casa envolto em silêncios, em medos, em suposições, em conversas meio banais que se tornaram grandes dilemas no mês que demorou o resultado a chegar. Um mês em que sentia a minha barriga crescer, em que interagia com o meu bebe, em que ele se mexia ao meu toque ou ao som da música que lhe punha nos auscultadores encostados à barriga, onde iam chegando as roupinhas já encomendadas... um mês em que tanto queria esquecer mas que ao mesmo tempo foram os dias em que mais atenção lhe dei.
Chega o dia D. Nova ecografia e resultado da amniocentese em cima da mesa. O obstetra começa por observar a evolução (pouca) e pergunta se já tinhamos falado com a equipa de genética. Respondemos a medo que não e aí ele limpa a minha barriga e pede-nos que passemos ao gabinete do lado, onde já toda a equipa nos esperava.
"Temos já os resultados pedidos sobre a amniocentese e se inicialmente aquilo que suspeitavamos veio negativo, por outro lado foi encontrado aquilo que chamamos de síndrome raro e que coloca o vosso filho numa situação bastante dificil, por não sabermos ao certo as extensões dos problemas que poderá vir a ter ou sequer quanto tempo sobreviverá. É uma criança que poderá ter graves problemas a nível de orgãos vitais, cognitivos e físicos. Posto isto, precisamos saber o que pretendem fazer, uma vez que está no limite de tempo para tomar qualquer decisão."
Um gabinete, quatro médicos e nós...ali de mãos dadas, lágrimas nos olhos, revolta no peito, raiva na mente e o coração desfeito. Naquele momento, entre mil e uma perguntas e ao mesmo tempo poucas palavras, tomámos uma decisão em conjunto.
Já o disse muitas vezes, não sou egoísta. Não é aceitável para mim colocar uma criança no mundo para sofrer. É para mim inconcebivel que por mero capricho, façamos sofrer um bebe indefeso que muito provavelmente iria passar o resto da sua vida em hospitais, clínicas e terapias. Não quero isso para um filho meu!
Carreguei-o por cinco longos meses para depois o "matar", porque foi assim que me senti naquele dia...CULPADA!!
Esta é a razão pela minha gravidez interrompida às 25 semanas de gestação!!
Ainda estou em processo de luto, com ajuda psicológica e psiquiátrica, sem vergonhas, a tentar seguir o meu caminho. Um caminho de braços e colo vazio, do meu bebe.
Hei-de chegar ao dia em que a palavra matar dará lugar à palavra salvar! Hei-de chegar ao dia em que a culpa seja cada vez menos. Hei-de chegar ao dia em que me perdoarei um pouco. Até lá, junto dos meus, inclusive da nossa estrela mais pequenina, vou apoiando a cabeça e chorando cada vez mais baixinho, para que ele possa encontrar as asas da avó e por lá fique aninhado até ao dia de nos voltarmos a tocar.
Sei que é um tema bastante controverso e polémico. A única coisa que vos peço é que não façam juízos de valor, porque deste lado está uma mãe a tentar sobreviver, um pai a tentar endireitar a casa, e um mano a tentar guardar no seu coração o irmão que sentiu mas nunca chegou a conhecer.
De coração, obrigada por todas as mensagens que nos têm feito chegar. Não há o que esconder, porque estas histórias servem para perceber que infelizmente, não acontece só aos outros.
Xi-coração apertado
Liliana